quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012


Reserva Natural do Paúl do Boquilobo, Golegã
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Um paraíso perdido na terra de José Saramago
 Mónica Sousa e Marta Mira
É a única zona de Portugal que faz parte da Rede Mundial de Reservas da Biosfera. Os repórteres Tinta Fresca descobriram, nesta reserva natural situada perto da Golegã, um verdadeiro paraíso perdido, longe das pressões turísticas e urbanísticas que assolam outras zonas do país. O Paúl do Boquilobo foi o tema da conversa que mantivemos com a bióloga Mónica Sousa e a engenheira silvicultora Marta Mira, ambas a exercer funções técnicas na Reserva.
O silêncio deste espaço apenas é quebrado regularmente pelos comboios da linha do Norte que atravessam a Reserva. No entanto, as aves deste paúl, apesar do comportamento temeroso perante qualquer visitante, parecem conviver pacificamente com este barulho que invade os campos.
A Reserva Natural do Paúl do Boquilobo é uma zona húmida situada nas imediações da Golegã, localizada na bacia hidrográfica do rio Almonda, na margem direita do Rio Tejo. Foi classificada como Reserva Natural devido essencialmente ao seu valor ornitológico. Esta área está também classificada desde 1981, como Reserva da Biosfera (UNESCO) e zona húmida de importância internacional (Convenção de RAMSAR), desde 1996.
Numa área total de 554 ha, a Reserva Natural é constituída por duas zonas, com regulamentação específica. A zona de protecção integral, que são cerca de 196 ha, onde não é permitido o acesso a pessoas, nem a qualquer tipo de actividade e a zona de uso extensivo que são cerca de 358 ha onde é possível exercer determinadas actividades humanas como são exemplo a agricultura, o pastoreio e o turismo.
A paisagem do Paúl do Boquilobo é dominada por maciços de salgueiros- salgueiro branco (Salix alba) e salgueiro preto (Salix atrocinerea); zona permanentemente alagada, coberta por várias plantas aquáticas como o golfão branco (Nymphaea alba) e a espanada (Sparganiom erectum) e uma extensa área de caniçal (Phraganium australis) e bunhal (Scirpus lacustris).
Zonas húmidas: uma relevante
        herança natural e cultural
Bando de aves pousado numa árvore 
Consideradas durante muito tempo como zonas inóspitas, de fraco rendimento económico e com pouco utilidade social, as zonas húmidas são hoje reconhecidas como espaços de elevado valor ecológico e de alta produtividade biológica. O facto de desempenharem funções que servem de suporte às actividades humanas, representa uma relevante herança cultural e natural. O facto das espécies existentes nestas zonas serem cada vez mais raras e ameaçadas de extinção, vem apenas valorizar a sua importância.
TINTA FRESCA- Qual é a diferença entre um Parque Natural e uma Reserva Natural?
MARTA MIRA- A grande diferença reside nos próprios objectivos que cada uma das áreas pretende atingir. Num Parque, os objectivos são um pouco mais abrangentes e numa Reserva os objectivos são mais específicos. As Reservas têm acções mais imediatas, no terreno.
MÓNICA SOUSA- Esta Reserva tem uma área muito pequena comparada com outras áreas protegidas e só o facto de não ter povoações cá dentro, faz alterar logo os objectivos.
TINTA FRESCA- Em que ano foi criada a Reserva Natural do Paúl do Boquilobo?
MARTA MIRA- A sua criação data de 1980 e a sua reclassificação de 1997. Passados dez anos da criação das áreas, estas são objecto de reclassificação, por lei, não só no seu estatuto como em tudo o resto.
As actividades do Homem:
        agricultura, pecuária e pesca

Cegonha no ninho 
As principais actividades humanas, no Paúl do Boquilobo, são a agricultura, a pecuária e a pesca tradicional como actividade complementar, utilizando redes e sendo o pescado essencialmente constituído por enguias, fetaço e ruivaço.
TINTA FRESCA- Qual é a relação que a reserva mantém com as populações que habitam à volta? Existem visitas de estudo por parte das escolas?
MARTA MIRA- Essa relação com as escolas existe, quando é necessário. Temos visitas de estudo, embora a área tenha, neste momento, um estatuto que dificulta um pouco as visitas das escolas. Na medida em que alguma desta área é de protecção integral a direcção entendeu por bem restringir essas visitas a grupos de seis pessoas e com intervalos de uma hora, para salvaguardar as condições de nidificação.
MÓNICA SOUSA- Às vezes há situações complicadas, como no caso da água. Quando existem cheias, os proprietários querem que os terrenos sejam drenados o mais rapidamente possível, para os cultivarem. Nós, pelo contrário, queremos tentar manter a água o maior tempo possível, para a armazenar para a época de verão. Acabamos por chegar depois a um acordo.
Em relação às visitas de estudo, quando vinham turmas muito grandes, nós verificávamos que alguns ninhos eram depois abandonados porque a nossa área é mesmo pequena e a zona de visitação passa ao lado de algumas zonas sensíveis. Por isso, a direcção tomou algumas medidas, no sentido de proteger as espécies.
Os problemas da Reserva:
efluentes industriais, infestantes aquáticas
e a regularização dos níveis de água
Os maiores problemas da Reserva Natural prendem-se com os efluentes industriais, a expansão de espécies aquáticas infestantes e a regularização dos níveis de água para efeitos agrícolas. Estas condicionantes representam, entre outros factores, uma influência negativa no volume e na qualidade, quer da água quer da vegetação aquática. Para além disso, afectam a tranquilidade do local, condicionando portanto a presença e a nidificação das aves.
As quintas da Reserva: Broa, Miranda e Paúl
Engª Marta Mira 
TINTA FRESCA- Não habitam pessoas, na área da Reserva Natural?
MARTA MIRA- Não. No entanto, aqui à volta existem três grandes quintas: a Quinta da Broa, a Quinta de Miranda e a Quinta do Paúl que têm como suporte a agricultura, que é a grande actividade aqui da zona. Existem terrenos que estão incluídos na Reserva e que são propriedade dessas quintas e doutros proprietários. Estamos numa tentativa de adquirir mais terrenos para os incluir na área de reserva integral, pois as condicionantes são muitas, dado o valor das espécies aí presentes, em termos de avifauna. A existência destas espécies, vai condicionar o uso desses terrenos, por parte dos agricultores.
A grande pressão que existe nesta área é a nível da agricultura, por causa dos fertilizantes e da qualidade da água. No entanto, devemos estar atentos e implementar o código das boas práticas agrícolas. É fundamental também manter um bom diálogo com os agricultores. Os nossos grandes problemas são as infestantes e o lagostim.
MÓNICA SOUSA- A riqueza maior do Paúl do Boquilobo é a água, mas esse é também o nosso maior problema. A água aqui tem de ser monitorizada, não só em relação à agricultura, mas a tudo o resto. Neste Inverno, tivemos esta área totalmente inundada. No Verão, temos algumas zonas em que precisávamos de alguma água para dar suporte a toda esta avifauna e não temos. No entanto, esta não é uma área com grandes dramas. São situações que estão, até agora, previstas no nosso plano de ordenamento e de actividades. Há uma série de acções, agora em curso, que a médio prazo poderão dar resposta a tudo isto.
Temos também uma actividade com algum peso, que é a pesca do lagostim vermelho, que é uma espécie exótica. Foi criado um regulamento para essa pesca profissional aqui nesta zona. São concebidas licenças anuais, num total de cinco, actualmente. A época de pesca ocupa todo o ano, com excepção da época de nidificação da avifauna, que abrange o período de Março, Abril e Maio.
TINTA FRESCA- A quem pertencia anteriormente a Reserva Natural?
MARTA MIRA- Pertencia maioritariamente às três grandes quintas. As terras continuam a pertencer a estas quintas. No entanto, na área da reserva integral têm condicionantes em termos de utilização, que se prendem com a riqueza da avifauna existente. Esta área não é só uma reserva natural pois tem uma série de estatutos. Embora seja uma área muito pequena, é uma área extremamente rica em termos de conservação. É a única zona de Portugal que faz parte da Rede Mundial de Reservas da Biosfera.
Esta Rede Mundial de Reservas da Biosfera foi criada em 1976 pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) no âmbito do programa "O Homem e a Biosfera" (MAB- Man And Biosphere), contando em 1995 com a participação de 324 reservas de 82 países. Esta rede tem como principal objectivo a conciliação da conservação da natureza com o desenvolvimento tecnológico e a utilização dos recursos naturais.
TINTA FRESCA- Em relação à Reserva, existem algumas condicionantes em termos de construções?
MARTA MIRA- Em termos de regulamentos do diploma aqui em vigor, há uma série de actividades que acabam por não acontecer na prática. Nós estamos numa área tão agricultada que é muito esporádico alguém vir pedir autorizações para alguma actividade. Pedem-nos por exemplo, relativamente a furos e a licenças de espantamento, mas, como é uma área que não tem grandes pressões a esse nível, não é habitual.
As limitações da actividade humana
 Drª Mónica Sousa
TINTA FRESCA- Quais são as limitações que há, em relação aos agricultores? É mais na base dos fertilizantes?
MARTA MIRA- As limitações são mais ao nível das captações de água, da pesca ou da caça. Na área da reserva, não é permitido caçar, mas tudo em volta são zonas de caça. No entanto, os agricultores sabem quais os fertilizantes que devem ou não utilizar pois está tudo escrito no código de boas práticas agrícolas, que está neste momento em vigor.

MÓNICA SOUSA- Nós temos uma relação muito boa com a AGROTEJO, que é uma associação de agricultores. Eles tentam promover e fomentar o código de boas práticas agrícolas, em toda a região e é mais fácil para os próprios agricultores terem uma relação directa com a AGROTEJO, do que connosco. Até porque estão mais habituados a falar com a AGROTEJO e ficam um pouco desconfiados connosco. Somos estranhos e eles acabam por não perceber o que nós estamos aqui a fazer. Alguns pensam que andamos "a guardar patos"...
MARTA MIRA- Eu acho que as pessoas entendem bem a nossa função aqui, porque isto é quase o último reduto, em termos daquilo que as pessoas de 60 e 70 anos têm memória.
TINTA FRESCA- Para além da pesca, que outras actividades a Reserva Natural permite?
MARTA MIRA- Nós tentamos dar visibilidade às acções desenvolvidas aqui na reserva. Temos exposições, estamos a melhorar o nosso trilho, que neste momento está submerso, e também a sinalização. Tentamos criar melhores condições para que o visitante chegue à Reserva e se sinta confortável e esclarecido.
MÓNICA SOUSA- Em relação às visitas, temos uma espécie de dois trilhos de visitação. Há um mais completo, que leva as pessoas a uma zona mais sensível. Dependendo dos objectivos da visita, poderão lá ir ou não, mas o período de nidificação está sempre salvaguardado. O outro trilho é mais para terem uma vista geral.
Mamíferos: no reino da lontra
Na área da Reserva Natural do Paúl do Boquilobo estão identificadas 12 espécies de batráquios, 8 espécies de répteis, 17 espécies de mamíferos e 146 espécies de aves regulares e 22 ocasionais ou acidentais. Dos mamíferos existentes na área, é a lontra (Lutra lutra) a espécie que mais destaque merece, por se tratar de uma espécie ameaçada e protegida a nível internacional (Convenção de Berna).
Aves: da diversidade de garças, patos e colhereiros
à raridade da gaivina-dos-paúis e águia-pesqueira
Bando de aves no solo do paúl 
A Reserva Natural alberga uma importante colónia de garças: a garça-boeira (bubulcus ibis), a garça-branca (Egretta garzetta), o goraz (Nycticorx nycticorax)- que na época de nidificação, de Março a Junho, atinge o número de alguns milhares de indivíduos. Outras espécies que nidificam em menor número são a garça-vermelha (Ardea purpurea) e o garçote (Ixobrychus minutus). Merece também realce o colhereiro (Platalea leucorodia) por representar 90% da população nacional.
O Paúl do Boquilobo é uma das principais áreas do país no que respeita à alimentação e repouso de anatídeos- o arrábio (Anas acuta), o zarro-comum (Aythya ferina), a marrequinha (Anas crecca), o pato-trombeteiro (Anas clypeata), a negrinha (Aythya fuligula) entre outros- que, de Novembro a Fevereiro, nele se refugiam fugindo aos rigores do Inverno noutras paragens. Deve-se ainda destacar a presença da gaivina-dos-paúis (Chlidonias hybridus) e da águia-pesqueira (Pandion haliaetus), espécies raras em Portugal.
Flora: a importância do bunho na cestaria tradicional
TINTA FRESCA- Qual é o ex-libris da Reserva, em termos de fauna e de flora?
MÓNICA SOUSA- A nível de fauna, temos os ardaídeos (garças), o colhereiro e os anatídeos (patos), no Inverno. Ao nível da flora, temos vegetação ripícula, como os salgueiros, o freixo, o bunho, o caniço, o junco e o montado, que está situada numa zona mais elevada. Antigamente esta área era um grande bunhal. O bunho era muito utilizado na realização da cestaria tradicional.
Migração de aves: da África para o Norte da Europa
TINTA FRESCA- Quais são as espécies que estão em perigo de extinção?
MÓNICA SOUSA- Há várias espécies em perigo de extinção. Por exemplo a gavina-dos-paúis, a águia-pesqueira, duas espécies de patos, dois passarifones e alguns anfíbios.
TINTA FRESCA- Em termos de aves, este é um ponto de migração?
MÓNICA SOUSA- Sim. Alberga a maior colónia de ardaídeos (garças) e é um dos poucos locais onde nidificam as clidonias (gaivinas). Estas aves migram do norte da Europa para África e de África para o norte da Europa e, normalmente, param aqui. Portanto, aqui é um ponto de passagem de muitas aves.
Tese de mestrado sobre parte
     da História do Paúl do Boquilobo já existe
TINTA FRESCA- Qual é o grau de perturbação que a linha de caminho de ferro (linha do Norte) tem nas espécies?
MÓNICA SOUSA- Nós não sabemos qual é o grau de perturbação que a linha do Norte tem. Antes da linha do Norte existir, não foi feito qualquer estudo nesse sentido, só depois e, por isso, não sabemos se teve influência ou não. Neste momento, essa perturbação quase não se verifica.
TINTA FRESCA- Não existem estudos do início do século sobre a Reserva Natural?
MÓNICA SOUSA- Mais ou menos. Existe uma tese de mestrado que foi apresentada no início deste ano e esse mestrado tem a ver com uma família que foi dona de uma parte da Quinta do Paúl. Essa investigadora fez uma grande pesquisa, mas ainda não foi possível aceder a essa tese, só a partir de Março.
No entanto, essa senhora contou-me algumas coisas, como por exemplo, a existência de um troço do rio Almonda, que foi depois desviado. Ela descobriu que foi no século XIV ou XV. Com este trabalho vamos ter conhecimento de algumas coisas que até agora não sabíamos.
Câmara Municipal da Golegã:
         uma parceria que funciona
TINTA FRESCA- Como é que é a vossa relação com a Câmara Municipal da Golegã?
MARTA MIRA- É bastante boa. O espírito que prevalece entre nós, é o de deixar claro os nosso objectivos, mas tentamos aproximar-nos ao máximo em termos de colaboração. Mesmo naquelas questões em que supostamente as pessoas não estão de acordo, pelo menos têm uma base de entendimento: apresentam as suas razões e constrói-se dessa forma o diálogo. O diálogo com a Câmara tem sido sempre feito desta maneira e temos tido uma boa colaboração.
Na terra de José Saramago: um local de inspiração
 O bailado de um bando em voo
TINTA FRESCA- Encaram as visitas como um factor positivo? Quanto mais conhecida for uma reserva maior será a tendência das pessoas para a proteger pois vêem-na como um bem que possuem na sua terra. Este parece ser um aspecto importante das políticas de conservação da Natureza, actualmente, segundo parece....
MÓNICA SOUSA- Sem dúvida. E deixamos o convite à pessoas para uma visita a este paraíso húmido, que é a Reserva Natural do Paúl do Boquilobo.
MARTA MIRA- Esta área, em termos de paisagem muda tanto ao longo do ano, que isso lhe confere uma riqueza específica ainda maior. Há quem prefira vir aqui na época de cheias, com a Reserva totalmente inundada, outros não. O Paúl do Boquilobo é uma boa fonte de inspiração, temos o exemplo do escritor José Saramago que é natural aqui da Azinhaga e deve ter estas paisagens na sua memória. Há muitos escritores que falam do Paúl do Boquilobo.
O Tinta Fresca subscreve o convite feito pelas técnicas da Reserva para visitarem a Reserva Natural do Paúl do Boquilobo: paisagens bucólicas e a presença sempre constante das aves fazem desta zona húmida um espaço de visita obrigatória. Quando se decidir, pode dirigir-se à Reserva Natural do Paúl do Boquilobo, Golegã, ou então marcar uma visita através do telefone 249 820 550. Para quem mora na Região Oeste, o itinerário rodoviário recomendado é: Fátima-Torres Novas-Golegã.

      Sónia Santos
      Mário Lopes
13-03-2006

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