quinta-feira, 8 de março de 2012

Quinta da Brôa, Azinhaga do Ribatejo

A Quinta da Brôa, ontem e hoje

por Coudelaria Veiga a Sábado, 9 de Janeiro de 2010 às 1:10 ·
À entrada da Azinhaga, uma enorme casa branca e sóbria ladeia a estrada de terra batida que leva a Mato de Miranda. Um portão de ferro, encimado por um trabalhoso emaranhado de ferro forjado, onde são visíveis as iniciais "R.J.C." de Rafael José da Cunha, ascendente da família Veiga, e a data de 1831, dá entrada para esta propriedade que já foi pertença dos condes da Ribeira Grande.

UMA EXPLORAÇÃO AGRÍCOLA DISPERSA POR VÁRIOS CONCELHOS

O brasão dos Câmaras ornamenta as cantarias do portão da Quinta da Broa, então Quinta do Almonda. Lá dentro, um amplo pátio, rodeado de construções revestidas a hera, desvenda a história de muitas gerações e o quotidiano de uma casa agrícola. A Quinta da Broa é o centro de um vasto conjunto de explorações agrícolas situadas nos concelhos da Golegã, Chamusca, Rio Maior e Santarém, e, acima de tudo, é o centro de uma reconhecida coudelaria: o ferro Veiga é garantia de qualidade.

Situada nas margens do rio, a Quinta do Almonda, como dantes era designada, foi pertença dos condes de Ribeira Grande, tendo sido arrendada por Rafael José da Cunha em 1829. Filho de uma abastada família albicastrense, Rafael da Cunha teve hipótese de percorrer a Europa e conhecer as mais modernas práticas agrícolas. Em Portugal, vivia-se o rescaldo das invasões francesas e a destruição que a retirada das tropas napoleónicas causaram no país. Muitos nobres tinham acompanhado a família real na ida para o Brasil, deixando o que lhes pertencia à mercê da sorte.

Foi neste quadro que Rafael da Cunha desceu da Beira Baixa em direcção às férteis terras do Ribatejo, onde já se tinham fixado familiares seus, nomeadamente em Tomar e Torres Novas. Torna-se rendeiro da Quinta dos Álamos (a que este jornal dedicará uma das suas próximas edições), à entrada da Golegã, e logo de seguida, da Quinta do Almonda. Dois anos depois, em 1931, compra a propriedade ao oitavo Conde e único Marquês de Ribeira Grande, D. Francisco Sales Maria José António de Paula Vicente Gonçalves Zarco da Câmara, e aí instala o cérebro de uma enorme casa agrícola que se repartia por 16 concelhos.

Como curiosidade, refira-se que, quando faleceu, em 1869, Rafael José da Cunha tinha ao seu serviço 220 empregados permanentes e a sua fortuna estava avaliada em 900 contos. Os bens encontram-se descritos num inventário de quase 300 páginas, entre as quais se registou a existência de 796 cabeças de gado bravo, 638 bois de trabalho, 267 cavalos, 2782 ovelhas e 1442 porcos.

DE QUINTA DO ALMONDA A QUINTA DA BROA

O espírito empreendedor e benfeitor de Rafael José da Cunha valeram-lhe dois elogiosos epítetos: "Príncipe dos Lavradores" e "O amigo dos pobres", cujo merecimento está claramente expresso nos registos da época. Se, no caso do primeiro, a fortuna que alcançou demonstra a sua destreza na administração e aquisição de novos bens, em relação ao segundo, o melhor testemunho é a alteração do nome da quinta - que começou a ser conhecida por Quinta da Broa - e o testamento que escreveu, anos antes de morrer.

A quem batia à porta da quinta, pedindo comida, nunca era negada uma refeição. Comida nesse tempo significava pão, principalmente broa, porque o chamado pão alvo, feito de farinha de trigo, era considerado um luxo que só muito poucos podiam saborear. Dizia-se então "vamos à broa" e, pouco a pouco, a casa de Rafael José da Cunha adoptou a toponímia de Quinta da Broa. Aos velhos, o senhor da quinta, dava comida, aos novos nunca recusava trabalho, nem que dele não precisasse. Quando morreu, deixou em testamento bens e dinheiro a todos os seus empregados, conforme os cargos que desempenhavam, e a muitos carenciados e instituições de beneficência. Aos familiares, o património foi legado de forma a assegurar a sua continuidade na posse da família, como ainda hoje se mantém.

"Rafael José da Cunha era tio avô da minha trisavó", esclarece Manuel Veiga.

Sem herdeiros directos, Rafael da Cunha deixou os bens a sobrinhos e irmãos, cabendo a Quinta da Broa a António José Tavares Barreto, em regime de compropriedade com os seus quatro filhos, Manuel Tavares Barreto, Maria Emília Tavares, Adelaide Augusta Tavares e José Tavares Barreto. Por divisão posterior, a Quinta e as propriedades a ela adstritas ficaram na posse de Adelaide Augusta Tavares e de seu marido, Manuel Mendes da Veiga, também natural da Beira Baixa, sendo mais tarde herdada pelo engenheiro Manuel Tavares da Veiga. A continuidade foi assegurada por Carlos Veiga, o único dos cinco filhos de Tavares da Veiga a deixar descendência. Manuel Tavares Veiga, filho de Carlos Veiga, herdou a propriedade de suas tias Raquel e Maria Eugénia Cunha Anjos Tavares Veiga, após a morte desta última ocorrida em 1991.

OS CAVALOS VEIGA

A repetição de nomes dificulta a compreensão das sucessivas gerações. Mas a tradição é para manter e o nome Manuel continua a ser utilizado: "Já vai no sétimo Manuel que é o meu filho mais velho", diz Manuel Castro Tavares Veiga. Aliás, o ferro da coudelaria é composto por um "M" e um "V" sobrepostos.

A criação de cavalos data do tempo de Rafael José da Cunha. A
cavalariça, forrada a madeira, que ainda hoje é utilizada - "tivemos de fazer algumas obras e modernizar o sistema com bebedouros automáticos e outros equipamentos" - é das poucas instalações agrícolas que continuam a servir para o mesmo fim para que foram criadas. Situa-se do lado direito do pátio e, tal como as restantes construções, à excepção da casa da habitação, está revestida a hera.

No entanto, o grande incremento à coudelaria foi dado pelo engenheiro Manuel Tavares Veiga: "O meu bisavô era agrónomo e bastante entendido em genética. A coudelaria evolui muito sob a sua orientação", adianta Manuel Castro Veiga.

Num livro da autoria de Álvaro Tavares Barreto, intitulado "Cavalos Veiga", pode ler-se: "(...) Seleccionou animais cujas características morfológicas e anímicas entendeu melhor corresponderem à funcionalidade guerreira, exigida aos cavalos de toureio (...). Utilizou o método de cruzamentos consanguíneos, tendo em vista o apuramento das espécies dentro da mesma raça e a homogeneidade necessária à fixação das suas próprias características". Desta forma, fixou as características dos cavalos Veiga: "cabeças lindíssimas, finas, secas e ligeiramente convexas, cores raras e antigas, membros finos e acurvilhados, dorsos flexíveis e belos pescoços maleáveis".

OS TROFEUS

Um antigo armazém de azeite, que conserva os depósitos em pedra, guarda os prémios que a coudelaria foi ganhando ao longo dos anos. "Decidimos conservar os depósitos, também fazem parte do património, embora já não guardem azeite desde há muitos anos. Mesmo assim, se levantarmos as tampas ainda cheiram a azeite", diz Manuel Veiga.

Nas paredes, estão expostos inúmeros trofeus e, em cima dos depósitos, foram dispostos os carros de cavalos, selas e arreios, alguns deles autênticas relíquias: "Todas estas peças fazem parte da história da família. Foram de cavalos que ganharam prémios e eram utilizadas pelos meus antecedentes nas suas montadas", diz Manuel Castro Veiga que fala com prazer deste valioso património. Alguns dos carros continuam a ser utilizados no dia-a-dia como meio de transporte no interior da quinta, outros aguardam reparação - "é muito caro reparar um carro destes, fazemo-lo à média de um por ano" - outros ainda são do melhor que se fabricou neste tipo de veículos de tracção animal. Como são os carros de um Feyton, construído pelo pariense Binder, ou um Dogcar.

AzeitonoPor cima do portão de entrada, está pendurada a cabeça de um touro, o "Azeitono", que fez história pela sua bravura: "Foi corrido na Praça de Madrid, na temporada de 1854, e matou sete cavalos", esclarece o anfitrião. O empresário de Madrid e um grupo de aficcionados decidiu mandar embalsamar a cabeça do toiro e ofereceu-a a Rafael José da Cunha.

A gadanaria foi também criada por Rafael da Cunha que a deixou por testamento a um dos seus feitores. Na casa Veiga, a criação de gado bravo só foi retomada em 1969 pelo pai e tio, já falecido, de Manuel Castro Veiga.

PECUÁRIA, VINHA, CULTURAS ANUAIS E FLORESTAIS

Os cerca de 40 hectares que rodeiam a casa da Quinta da Broa estão destinados aos cavalos. Manadas de éguas com as suas crias pastam nos prados, produzindo um barulho cavo quando os maiorais as conduzem para outros locais.

Para além da coudelaria e da ganadaria, instalada numa outra herdade, a Quinta da Broa dedica-se também à criação de bovinos de carne. Depois, há hectares e hectares explorados com culturas anuais. "Cultivamos milho, principalmente, e depois trigo e beterraba. é bastante diversificado", continua. Ao milho, a casa dedica cerca de 200 hectares, situados no concelho da Chamusca.

A vinha, e não o vinho porque as uvas são vendidas, é outra das actividades, bem como a floresta: "A parte florestal é de facto muito importante", adianta Manuel Castro Veiga, a quem cabe administrar a Quinta da Broa, e continua: "é uma exploração familiar dos meus pais e eu vou administrando. Mas cada vez é necessário fazer mais contas porque o lucro é menor e nós somos agricultores, vivemos exclusivamente disto".

As propriedades situadas nos concelho de Golegã, Rio Maior, Chamusca e Santarém são trabalhadas por 25 pessoas, em regime de permanência. Na época das colheitas é preciso mais pessoal: "Lembro-me que, quando comecei a trabalhar, havia 40 pessoas, actualmente são 25. Só na época das colheitas é necessário contratar mais empregados: hoje as coisas estão todas mecanizadas. As vindimas fazem-se com máquinas. Os olivais, na Golegã não temos, só em Rio Maior, mas a colheita é praticamente nula e é difícil arranjar gente para a apanha. Quando comecei, fazia 15 hectares de milho e precisava de três motores e três homens. Actualmente fazemos 200 hectares só com uma pessoa para regular os pivots. Tudo. é mais fácil, mas cada vez se ganha menos. Cada vez mais temos de estar atentos com as contas e os papéis, o que é uma coisa que me entristece imenso. Cada vez temos de perder mais tempo no escritório. Mesmo assim, estamos na melhor zona do país. Quando aqui estivermos mal, o país já morreu".

A CASA E A QUINTA

A família de Manuel Tavares Veiga foi residir para a Quinta da Broa, após a morte das tias, no início da década de 90. A moradia, mandada construir por Rafael José da Cunha, sempre tinha estado habitada, mas precisava de grandes reparações.

A sobriedade das paredes brancas e das muitas janelas, reserva uma enorme riqueza interior. As paredes e tectos estão cobertos de frescos, muitos dos quais alusivos a cenas do quotidiano de uma casa agrícola. A sala de jantar, por exemplo, é toda ela uma pintura. A recuperação a que a casa foi sujeita envolveu o restauro de todas as pinturas interiores.

"Após a morte das minhas tias, encetámos esta obra de coragem. A casa sempre esteve habitada, mas precisava de ser reparada e adaptada às necessidades actuais", continua Manuel Veiga. Facto por de mais evidente. Basta transpor a porta de entrada e olhar para as paredes envolventes. "A recuperação das pinturas é uma coisa extraordinária. É um trabalho de artista. Eles limpam a tinta com borrachas especiais vindas de Itália e só pintam o que está estragado. É muito interessante".

À capela, no topo sul da casa, chega-se atravessando algumas salas. Num pequeno compartimento revestido a azulejos, mesmo assim maior que algumas divisões dos apartamentos, guardavam-se as chaves dos celeiros, cavalariças e de todas as dependências da quinta. Pode imaginar-se as enormes chaves de ferro que pendiam dos cabides, igualmente grandes, suportados nas tábuas fixadas nas paredes. Depois, uma outra sala e mais outra e finalmente a capela. Um templo, em honra de Nossa Senhora da Conceição que guarda os restos mortais de Rafael José da Cunha.

"Foi ele próprio quem determinou que queria ficar na quinta e mandou construir o túmulo". O sepulcro ostenta um lápide onde se lê: "Aqui jaz Rafael José da Cunha. o virtuoso amigo dos pobres e o considerado príncipe dos lavradores de Portugal. Nasceu em Castelo Branco no 1.º de Abril de 1791, e morreu na sua quinta da Brôa aos 27 de Abril de 1868. Um P. Nosso e Avé Maria por sua alma". Por cima do túmulo, encontra-se a urna contendo a ossada do cão favorito de Rafael José da Cunha.

No topo norte encontra-se um varanda de consideráveis dimensões. Na parede da casa foram pintados, entre as janelas, nichos que guardam figuras alegóricas representando a Agricultura, o Comércio, a Indústria e a Abundância.

O PALÁCIO VELHO

A casa, iniciada nas primeiras décadas do século XIX, abre-se sobre o mesmo pátio, com árvores centenárias, em torno do qual se encontra grande parte das instalações agrícolas.

O solar dos condes de Ribeira Grande situava-se no centro desse terreiro, a cerca de 40 metros do portão de entrada. Tratava-se de um solar setecentista que acabou por ser destruído porque, segundo Manuel Castro Veiga, tinha pouco valor arquitectónico: "Estava num estado de degradação enorme, situava-se mesmo no meio do pátio e foi uma boa opção tê-lo destruído".

A essa moradia, mandada construir possivelmente por D. Joana Tomázia da Câmara, 5.ª condessa da Ribeira Grande, sepultada na igreja matriz da Azinhaga, ou por seu filho, o 6.º conde D. Luís António José Maria da Câmara (1754-1802), chamavam o palácio velho.

Fora dos portões, a caminho da Azinhaga, uma casa com janelas guardadas com ferros forjados inicia uma correnteza de pequenas habitações térreas de ambos os lados da via. Eram as casas dos empregados da Quinta da Broa. A primeira era do feitor.

"Dantes estavam todas ocupadas, hoje apenas algumas. Pensamos restaurá-las e abri-las ao turismo", esclarece Manuel Castro Veiga que continua: "Temos condições fantásticas para o turismo e acho que o futuro vai passar por aí. Gosto muito das minhas coisas, mas temos de facilitar a nova geração. Estamos a 100 quilómetros de Lisboa, mas com a auto-estrada é tudo mais fácil."

E, para lá das inegáveis condições e da calma paisagem com o rio e planura do campo da Golegã, os proprietários da Quinta da Broa sabem do agrado que os estrangeiros sentem quando visitam a zona. "Os nossos cavalos são vendidos para todo o mundo, quase semanalmente recebemos a visita de estrangeiros aqui na Quinta e ouvimos o que nos dizem. Penso que o importante é a divulgação".

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